terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Para uma avenca partindo  


Caio Fernando Abreu


Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viveras superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualqueratraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um diadestes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.
Mais carteiras!

Essa carteira é de origami!
Isso mesmo! São só dobraduras, nada de linha, agulha, costura, ...

Essa foi a primeira, não ficou tão perfeita, mas chegou bem perto!
As marcações e dobras precisam ser bem exatas, nada de acochambrar..



Um pouquinho de artesanato..

Sempre que tenho um tempo sobrando gosto de ir atrás de coisas artesanais para fazer..
Já fiz arte francesa, cadernos, garrafas cheias de estrelinhas de papel, um pouco de vagonite quando era pequenina, e agora carteiras!





Quer comprar??
Envie um email!

dri.dm.if@gmail.com

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Hoje eu fui dormir com dor da Humanidade..


Cansada, cansada de tudo, ou melhor quase tudo.
Sabe, são cobranças, pressões, problemas, hipocrisias, egoísmo, arrogância, mais egoísmo, falta de humildade, de compaixão, de sentimentos!
O egoísmo predomina. As pessoas vivem em suas mini-bolhas (cada vez mais mini's), seus clãs hipócrita-sociais, vivem em mintiras, se julgam pelos seus diplomas, suas notas, seu certificados...
As pessoas se transformam cada vez mais em papéis, papéis que são analisados por outros papéis, que por serem "maiores" se julgam superiores. O humano por trás daquele papel de nada importa, ele se torenou uma máquina, uma marionete (às vezes até de si mesmo), já não sente vontade, não possui desejo, tem apenas uma obrigação a cumprir, e sabe para que?? Para conseguir mais um papel! 
E quanto mais foco nessa obrigação menor a sua bolha fica, o mundo começa a se tornar desinteressante, passeios, coisas pequenas e simples, coisas que "dão trabalho" são desnecessárias, são cansativas, são longe, é tempo perdido..
E assim toda a sua juventude, seu prazer em viver, vão ficando para trás e sabe? A vida vai ficando menos vivida.
Mas enfim! Você consegue um excelente trabalho! Oras, era o que queria! E quando se ve com 35 anos percebe que não viveu seus últimos 15 anos, mais aí já se sente velho, envergonhado de fazer as coisas que não fez, deprimido e resolve por continuar seu tão desejado sonho, casado, com filhos, mas sozinho por dentro. Não se tornou ninguém além de mais um número, mais uma certidão de nascimento, um cpf, um imposto de renda. 
Não tem história, não tem lembranças, vive de falsas alegrias, falsos prazeres, de confraternizações que não suporta, vive o mundo que sempre sonhou, da pior forma possível porque se preocupou apenas em alcançar o seu sonho e não aproveitou o mundo que passava gritando ao seu redor.
E aí, que decisão você já tomou? O que você pretende fazer? Sorriu nessas últimas horas? Fez algo novo para você ultimamente? Está vivendo? Ou está morrendo um pouco a cada dia?
A decisão é sua, você quem faz suas escolhas.




Escrito em 07/12




quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Em cartaz!

Faço GTP, Grupo de Teatro da Poli, são 4 núcleos amadores, Amarelo, Vermelho, Azul, Laranja e um profissional Verde. 
Na próximo semana haverá peças todos os dias às 20h30 na sala do GTP na Poli.

A imagem abaixo é do núcleo que eu participo!

 

segunda-feira, 25 de outubro de 2010


"Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera"
Secos e Molhados

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

   Uma música retirada do filme "O Sentido da Vida" do Monty Python, filme esse que recomendo a todos! Assim como "O Cálice Sagrado",  "A Vida de Brian" e a série "Flying Circus". O humor desses britânico é genial!
   Logo abaixo da letra há o link com o vídeo (trecho do filme) excelente!




"Why are we here? What's life all about?
Is God really real, or is there some doubt?
Well, tonight, we're going to sort it all out,
For, tonight, it's 'The Meaning of Life'.

What's the point of all this hoax?
Is it the chicken and the egg time? Are we just yolks?
Or, perhaps, we're just one of God's little jokes.
Well, ça c'est 'The Meaning of Life'.

Is life just a game where we make up the rules
While we're searching for something to say,
Or are we just simply spiralling coils
Of self-replicating DN-- nay, nay, nay, nay, nay, nay, nay.

What is life? What is our fate?
Is there a Heaven and Hell? Do we reincarnate?
Is mankind evolving, or is it too late?
Well, tonight, here's 'The Meaning of Life'.

For millions, this 'life' is a sad vale of tears,
Sitting 'round with really nothing to say
While the scientists say we're just simply spiralling coils
Of self-replicating DN-- nay, nay, nay, nay, nay, nay, nay.

So, just why-- why are we here,
And just what-- what-- what-- what do we fear?
Well, ce soir, for a change, it will all be made clear,
For this is 'The Meaning of Life'. C'est le sens de la vie.
This is 'The Meaning of Life'. "






terça-feira, 21 de setembro de 2010

PARA VIVER UM GRANDE AMOR

"Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.

Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.

Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...

Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.

É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.

Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva obscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor."

Vinícius de Moraes





sexta-feira, 17 de setembro de 2010

História das Coisas


Os link's  a seguir tratam de um documentário chamado "História das Coisas" (The Story of Stuff) de Annie Leonard.

Tá, mas é um documentário sobre o que??
  • O documentário tem cerca de 20 minutos, mostrando passo a passo os subterrâneos de nossos padrões de consumo. 
  • O caminho percorrido pelos produtos, extraçãoão, produção,  venda, consumo e descarte. Mostra que todos os produtos em nossa vida afetam comunidades em diversos países.
  • Revela as conexões entre diversos problemas ambientais e sociais, e é um alerta pela urgência em criarmos um mundo mais sustentável e justo.
  • Ensina muita coisa, nos faz rir, e pode mudar para sempre a forma como vemos os produtos que consumimos em nossas vidas.

Link do site em que essas informações foram retiradas, nele há mais informações sobre o vídeo.
http://www.sununga.com.br/HDC/index.php

Vídeo no Youtube
http://www.youtube.com/watch?v=lgmTfPzLl4E

Recomendo esse vídeo a todos, a maneira como ele mostra o padrão de consumo hoje no mundo é muito interessante e para alguns, os fará pensar.




quinta-feira, 16 de setembro de 2010







A luz é como a água
Por Gabriel García Márquez

"(...) mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das
camas e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos
tinham-se perdido na escuridão."

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.

— De
acordo — disse o pai —, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.

Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam.
— Não — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui.

— Para começar — disse a mãe —, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.

Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação,

— O barco está na garagem — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar.

No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada.

— Parabéns — disse o pai. — E agora?

— Agora, nada - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto.

Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa.

Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes.
— A luz é como a água — respondi. — A gente abre a torneira e sai.

E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido.




— Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada.
— disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho.

— E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel.

— Não - disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência.

— É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever — disse ela —, mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor.
No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão.

Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe.

O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade — disse.

— Deus te ouça — respondeu a mãe.

Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam 
A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama.
Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que agitava-se com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiroflutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores.

No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de 
brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.